Seu Sebastião passou a manhã, como de costume, cuidando dos pássaros. Passou o tempo todo no quintal, assobiando enquanto limpava seus dois enormes viveiros e as muitas gaiolas espalhadas por todo o redor da casa. Dona Zilda colocava o angu com linguiça na mesa quando ele chegou do banheiro, de mãos lavadas e pronto para o almoço.
- O sabiá que nasceu no início do ano tá vingando. Já era pra ter começado a cantar. Quero um macho. Se for, vou dar ele de presente pro mais novo da Vânia cuidar.
- Acha? Tião, o menino tá novo ainda pra cuidar do bicho. Deixa passar a puberdade. Engrossar a voz.
- Ele tá é precisando se ocupar com coisa certa, é isso.
- Hora do almoço não é hora dessas conversas, Tião... e logo o menino chega da escola.
O quintal de Seu Sebastião era dividido da seguinte maneira: as paredes eram ocupadas pelo viveiro das rolinhas, um gosto que somente ele entendia, pois ninguém via muita graça nas roliças barulhentas; o viveiro dos sabiás-laranjeira, uma herança de seu pai, os sabiás eram quase míticos pro olhar dele, só quem era muito especial ganhava um sabiá de presente do Seu Sebastião; e as incontáveis gaiolas de canários, sua verdadeira paixão, sua fama no bairro.
- Onde já se viu, o menino botou a família toda, a família toda sentada na sala, para assistir ele cantar e dançar que nem uma periquita...
- Já falei que não quero esses papos no almoço. E deixa que é criança, tá começando a cantar ainda, igual seu sabiá.
- E o pior é que ninguém fala nada. Todo mundo lá com cara de tacho assistindo o menino. Todo mundo tem medo dele virar viado e não faz nada.
- Tião!
- Aquilo era música de viado, e ele dançando e cantando todo afetado.
- Tião, chega!
A coisa com o sabiá-laranjeira é a seguinte, não tem muito como distinguir a fêmea do macho pela aparência, são pássaros que não apresentam, segundo os livros, dimorfismo sexual, como muitos pássaros. Se sabe o sexo do sabiá-laranjeira pelo canto. A fêmea pia. O macho canta. Seu Sebastião saboreia a espera dos primeiros meses, até que se chegue a hora do novo sabiá cantar, sempre esperançoso por mais um macho cantador, como falava. Por isso não fica procurando os indícios no corpo do bicho enquanto cresce, ele gosta de sentir a felicidade do primeiro canto. Se enche de orgulho ao descobrir um novo macho no viveiro, já vai logo preparando a nova gaiola e pensando quem será presenteado na família ou na vizinhança.
- Oi, vó! Oi, vô!
- Chegou meu sabiá-laranjeira! Tua vó fez o angu cremoso do jeito que você gosta. Lava a mão da rua e senta.
No viveiro, o pequeno sabiá-laranjeira, já predestinado a viver em uma pequena gaiola na casa do menino, é macho e, assim como Seu Sebastião, não o sabe. O que ele sabe e já pôde observar ao seu redor, é que seus parentes sabiás que cantam, acabam sendo levados embora do viveiro em gaiolas pequenas demais para uma vida feliz.
- Agora que já almoçou, vem comigo que quero te mostrar uma coisa.
- Tião, vê lá, hein.
- Eu vou ganhar um passarinho?
O menino, desde cedo, aprendeu que consigo havia algo de errado. Aparentemente, seu andar rebolante não estava certo; sua voz fina e delicada, que era a única que tinha, causava riso; seus gestos femininos, que lhe vinham tão orgânicos, afastavam amigos de escola, primos, e até os adultos. Era apenas enquanto dormia, ou quando sozinho, cantando e dançando com a música alta, que o menino estava em paz – era quem se é; pois toda interação com humanos significava se ajustar aos olhares e reprimendas dos outros. Mesmo assim, era cheio de vida, apaixonado pela música e por dançar.
- Tá vendo aquele pequeno ali? Em breve vai ser seu. Tá chegando a hora de você aprender com o sabiá.
- Eu quero um sabiá pra mim! Mas eu vou aprender o que com ele, vô?
- Calma, ainda tenho que ter certeza se é um macho. Tem que ser um macho pra você levar.
- Mas o que eu vou aprender?
- Vai aprender que o canto do macho resolve tudo, que é o canto do macho que atrai a fêmea para nascerem outros sabiás, que é o canto do macho que impressiona quem visita sua casa, que é o canto do macho que te anima numa manhã difícil. Vai aprender que a gente, que é macho, é quem tem que ser firme no canto, na fala, na voz. Vai aprender a disciplina de ouvir seu sabiá, limpar gaiola, colocar a mão na sujeira...
O pequeno sabiá-laranjeira já havia há muito decidido que jamais cantaria. Queria ficar no viveiro, com espaço para voar, dividindo espaço e os dias com os parentes quietinhos, que apenas piavam, as fêmeas. Gostava da rotina e do jeitinho delas. Tinha certeza de que era uma delas. Acreditava que cantar ou piar era questão de respeitar o que se sente, que poderia seguir o caminho mais intuitivo para si. Mas foi crescendo e a coisa de não cantar começou a ficar estranha. Sentia pulsos muito fortes vindos de dentro, uma trepidação que afetava cada nervo, cada pena, até o bico. Parecia que tudo queria lhe sair pela boca. Com o passar do tempo, já não podia controlar seu próprio corpo. Segurou o tremor diuturnamente por um tempo. Até agora.
- Mas será? Zilda, anda ver isso aqui!
- Escuta, vô! Ele tá cantando!
- Vou já montar a gaiola. Hoje mesmo você leva seu macho pra casa. Vai cantar que é uma beleza.
Apesar que ter ficado tenso com o papo de seu avô – sobre coisas que não entendia muito bem, mas sentia, de alguma maneira, que tinha a ver com as costumeiras ordens de continência que sempre recebia –, estava extasiado com o novo presente. Se achou importante, seus irmãos só ganharam seus sabiás já mais velhos, se sentia pronto, maduro, um homem feito, estava livre, mesmo sem saber o que isso implicaria.
- Que bilhete é esse na sua mochila! Entra já, menino!
- Que sangria desatada é essa, Zilda! Tamo terminando de mexer com o sabiá do menino aqui.
- Vem aqui agora, moleque!
O pequeno sabiá-laranjeira havia perdido tudo. Sentia toda a movimentação, sabia que seria retirado de sua liberdade, de seu espaço, que viveria isolado na pequena gaiola, na função de cantar até morrer. Enquanto assistia Seu Sebastião preparar sua sentença, um canto glorioso lhe saía de dentro sem que pudesse controlar. Era macho. Era macho sem saber, macho sem querer.
- Que história é essa de falar que quer ser mulher, menino? Explica!
- O quê foi que você disse, Zilda?
- Tão dizendo aqui que o menino escreveu pra professora falando que é mulher, que não quer fazer tarefa de menino, que quer cantar e dançar com roupa de menina. Tô lendo aqui...
Seu Sebastião logo entendeu tudo. Ligou os pontos. Teve um primo que foi assim, botaram ele para fora de casa, depois ficou sabendo das histórias. A vergonha cresceu dentro dele como o canto do pequeno sabiá-laranjeira lá fora. Era hora de dar uma lição nesse menino de uma vez por todas, já que ninguém o fazia. O menino, acostumado a ler as rejeições mais sutis, tremia por dentro. Sabia o que estava por vir. Dona Zilda notou que o homem já estava com a cinta desabotoada e procurou o olhar do menino. O sabiá-laranjeira, em sua agonia, cantava. A ponta do couro rasgava diferentes partes das costas do menino, Seu Sebastião gritava “você vai virar macho!”, enquanto a cena os levava para o quintal. Dona Zilda não ousou intervir. Com a chegada de mais um golpe da cinta, o menino se jogou no chão, a cinta passou cortando o vento em direção ao nada. Com as costas ardendo e o uniforme da escola vermelho de sangue, o menino fez um passo de dança ligeiro para longe da cinta em direção à gaiola, pegou firme a alça e correu gritando rumo à rua, numa fuga de largos passos dançados, ao som ensurdecedor da passarada alvoroçada no quintal. Seu Sebastião nunca mais viu o menino. Tampouco o sabiá-laranjeira, assim como seu primo. O menino hoje é mulher – e seu sabiá-laranjeira só canta como quer.